domingo, 5 de fevereiro de 2017

Eu, Daniel Blake: a pura realidade e os benefícios ingleses

Vi hoje a "I, Daniel Blake" e muita coisa do sistema inglês me fez rememorar coisas que aconteceram comigo.
Vocês devem se lembrar da questão "insurance number" e conta bancária, se não lembram, o link está aí.
Tudo me lembrou muito o que passei para conseguir ser uma cidadã, imigrante, mas uma pessoa, não um número ou seja lá como nos veem. Imagina quando você é um cidadão inglês de direito... você está dentro dos seus direitos e só recebe deveres, deveres irracionais, perguntas imbecis, desconfiança.

A verdade é que o sistema inglês é muito defensivo, como você vê no filme. Você tem sempre que provar tudo e mais um pouco. Eu me lembro como fiquei desanimada, frustrada para conseguir o insurance e não conseguir quem me ajudasse.
No filme a moça, Katie, diz que as pessoas em New Castle são muito mais gentis do que em Londres, realmente... eu só fui perceber isso quando fui para Irlanda e Escócia, mas isso é outra história, para outro dia, o que quero falar sobre isso é exatamente essa falta de gentileza das pessoas: isso mata aos poucos... quando você é honesto (meu caso e de mr. Blake) e estão desconfiando de você enquanto ilegais conseguem tudo por outros meios, mas conseguem.

Não vivi esse período em que as pessoas estão perdendo suas casas do governo como acontece com Katie. Explico:

Há uma lei inglesa que diz que se você é uma moça solteira e tem filho, você  tem direito a uma casa do governo. Não quer dizer que você não pague essa casa, paga. Menos que um aluguel normal, mas se paga. Acredito que no filme Katie esteja dentro dessa lei de benefício.
Quando estava para voltar ao Brasil, havia estourado a questão da máfia das casas alugadas (aquela questão que a pessoa consegue do governo e subaluga ao preço que quiser e quem aluga pode "subsubalugar" os quartos). Essa máfia estava sendo descoberta e parece que a coisa iria feder para os beneficiários (pelo menos espero que para os safados).

Os benefícios ingleses dão casas de aluguel por esse preço menor aos mais pobres, e cidadãos europeus da comunidade europeia e cidadãos europeus que não nasceram na Europa, mas estão há mais de 3 anos na Europa.
Se eu tivesse ficado, poderia ter tentando conseguir um studio flat, o que estaria de muito bom tamanho para mim, mas hoje essa lei deve cair, já que a Inglaterra pediu saída da comunidade europeia.
Dão benefício a você ter um salário que complemente o seu salário se não chega a 100 libras por semana.
Dão benefício se você é sem teto e pode morar num hotel custeado pelo governo e que se paga também um pouquinho ou é totalmente bancado pelo governo. Deve ter sido desse albergue que Katie também fala que morou.

Vejam que há muitos benefícios interessantes para proteger a população britânica, o problema é que o cerco se fecha para se conseguir esses benefícios.

No filme você vê o quanto é burra a burocracia e quanto os personagens sofrem para conseguir o mínimo de dignidade através dos agentes governamentais que fazem pouco caso e são extremamente frios e impacientes.
Isso eu sentia muito, porque não adianta você ter um motivo, tentar conversar, eles não ouvem mesmo. Não é como no Brasil que você conta uma história triste e amolece o pessoal, não, eles não amolecem! E eu sentia muita falta desse "amolecimento" brasileiro, porque é duro você tentar expor suas dificuldades e a outra pessoa só dizer: fuck off! Era praticamente isso e o filme mostra bem.

Teve um perrengue que passei quase antes de vir embora, eu ia contar no momento que chegasse na minha narrativa, mas o filme me faz contar agora.

Trabalhava no outro prédio que não o Império do Fado, como contei da última vez, comecei a trabalhar com alguns portugueses, colombianos e ucranianas. 
Um dos gerentes da empresa ainda era aquele português que deu sinal para o outro quando coloquei na minha ficha que havia tido depressão - deu sinal querendo dizer "melhor não contratar".
Ele não devia mais se lembrar disso e foi com a minha cara, talvez do mesmo jeito que o amigo que era noivo, lembram?
Se não lembram, o amigo que me deu o emprego parecia ter se interessado por mim, sempre era legal comigo até o dia que o vi com a noiva - de aliança e tudo - no metrô e fingiu não me conhecer rs


Voltando, o cara perguntou se eu queria trabalhar umas horas a mais por duas semanas, cobriria as férias de uma menina num prédio encostado na Victoria Station, o que daria uns dois pontos de ônibus de onde eu trabalhava e daria pra emendar: iria trabalhar das 8 às 17 e entraria no meu trabalho às 18, como sempre. Daria pra ir caminhando fácil. Aceitei! Era tudo que eu precisava para ganhar mais um pouco e juntar dinheiro para a famosa viagem pela Europa que queria fazer, eu não poderia perder essa de jeito nenhum!

Depois conto como foi o trabalho, que era com aquele maravilhoso carrinho de limpeza, limpando o dia todo os banheiros e copas de uns 4 andares que cada um tinha duas alas.

Quando, toda feliz, fui receber esse dinheiro no meu pagamento o que aconteceu?
Não é possível como acontecia tanta desgraça comigo, né?

O dinheiro foi comido pelo leão britânico... sim... eu mal ganhava para mim quanto mais para pagar quase tudo em imposto de renda.
Fiquei sem chão. 
O QUE ACONTECEU COM O MEU DINHEIRO QUE TRABALHEI TANTO PRA GANHAR? E MINHA VIAGEM???
Tive que conversar com todo mundo no trabalho para me dizerem que foi algum erro em algum dos formulários onde trabalhei, que era preciso eu ir em todos os lugares onde estava em aberto o formulário de trabalho para ver em qual estava errado...
Não descobri qual estava errado... talvez a de limpeza das mudanças, onde fui e pedi minha ficha, formulário... whatever! dei baixa para não ser cobrada por isso...
Enquanto eu deveria estar num tipo de desconto, ou seja, zero, estava numa numeração em que tinha que pagar o imposto.

Foi simplesmente um inferno!
Fui a vários lugares que me mandaram para resolver isso, ia de um lado pro outro, ia na sede da antiga empresa do Império do Fado, fui na sede da empresa atual... ninguém resolvia, muito menos o local do governo responsável por isso...
Eu só queria saber onde estava meu dinheiro que suei tanto e sofri tanto para conseguir e nada...

Anjo?, a mulher que morei por último, era autônoma e tinha um contador, me levou até ele para resolver o caso.
Consegui receber uma parte ainda lá, mas só quando estava no Brasil, depois de meses é que recebi o restante, descontado impostos e taxas por ser enviado para outro lugar o que deu uns 100 reais... não mais que isso...

Sei bem o que Daniel Blake sentiu, sei bem o que é ser honesto e não ter razão num país extremamente fechado para o diálogo e que não percebe o quanto é imbecil sua burocracia. Sei o que é passar muita raiva e sofrer só mais um pouquinho para ter certeza que Londres não era meu lugar.

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